As mulheres são maioria no funcionalismo público[1] e, em geral, elas possuem mais qualificação acadêmica que eles – cerca de 17% das mulheres possuem curso superior completo, contra 13,5% dos homens (IBGE, 2016). Apesar de serem maioria e de terem mais qualificação, elas ocupam menos vagas de liderança (cerca de 37,8% das posições) e recebem, em média, salários menores. Enquanto as servidoras públicas recebem, em média, 3,9 salários mínimos por mês, os servidores homens recebem 5,2 salários mínimos por mês. Esses dados retratam a desigualdade de gênero no serviço público brasileiro e tem levado o Ministério Público de Contas a dar mais atenção ao tema.
O papel da mulher na sociedade brasileira é assunto que permeia todos os órgãos públicos e com o MPC não seria diferente. Durante o XIV Congresso Nacional do Ministério Público de Contas, ocorrido em 2021, a Associação Nacional do Ministério Público de Contas (AMPCON) e o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC) abriram um debate sobre a atuação do MPC brasileiro nos próximos anos, com base nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela ONU, dentro da Agenda 2030. Um desses objetivos, o de número 12, propõe alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
Pautados por este objetivo, os MPCs têm analisado as políticas públicas e os projetos voltados à igualdade de gênero, bem como o investimento público destinado a alcançar essa meta nos Estados e municípios brasileiros. De uma forma geral, percebe-se uma fragilidade na articulação e interlocução entre os serviços oferecidos pelo poder público, baixos investimentos em políticas públicas voltadas ao tema e ações incipientes para educação e mudança cultural. Além disso, há poucas informações oficiais e estruturadas sobre o tema, o que impede um planejamento adequado e soluções efetivas.
O cenário do funcionalismo público
No serviço público, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) consolidou um estudo sobre o perfil dos servidores e as mudanças ao longo de 30 anos (1986 -2017). O Atlas do Estado Brasileiro traz os dados sobre concursos, contratações, promoções, salários e funções. Na administração pública federal, por exemplo, observa-se que quanto mais alto o cargo atribuído, maior o nível decisório associado ao posto de trabalho e menor a participação feminina. Assim, em 2014, as mulheres ocupavam 45% das funções do tipo DAS (direção e assessoramento superior) 1, mas apenas 28% e 19% dos cargos DAS 5 e 6, respectivamente.
Uma das explicações sociológicas para essa discrepância é o chamado estereótipo de gênero, que pode ser definido como a generalização de um grupo de pessoas, por meio da qual certos traços são atribuídos a praticamente todos os membros, sem se considerar a real variação entre eles. A partir dos estereótipos, criamos generalizações para mulheres e homens.
O problema é que os estereótipos podem não refletir a verdade e, muitas vezes, são construídos culturalmente, ao longo do tempo. Um exemplo é o estereótipo da mulher cuidadora e do homem dominante, racional e competitivo. Essas generalizações são tão fortes que acabam influenciando o mercado de trabalho. Na prática, observamos mais mulheres ocupando postos de trabalho voltados ao atendimento de crianças e idosos e mais homens ocupando postos de liderança, por exemplo. São os chamados guetos ocupacionais.
No Brasil, de acordo com os dados do INEP, cerca de 70% dos concluintes dos cursos nas áreas de educação, saúde e bem-estar social, nos anos de 2001 e 2007, eram mulheres. Por outro lado, cerca de 70% daqueles que concluíram cursos na área de engenharia, produção e construção, no mesmo período, eram homens.
Pesquisas demonstram que, na verdade, o que ocorre é um processo de naturalização de atributos socialmente construídos, que está relacionado à percepção de que dadas características devem ser vistas como essenciais. Ou seja, essencializa-se uma determinada característica, que é construída socialmente, mas que passa a ser vista como “natural” e por isso intransponível. Em questionários aplicados a servidores públicos de diferentes idades, os homens são descritos como “independentes, dominantes, competentes, racionais, competitivos, assertivos e estáveis para lidar em momentos de crise”, enquanto as mulheres são caracterizadas como “mais emocionais, sensíveis, expressivas, gentis, prestativas e pacientes”[2].
Essas percepções generalizadas sobre o comportamento masculino e feminino levam, ainda, à segregação organizacional hierárquica, também chamada de “afunilamento” ou de “teto de vidro”. Ocorre quando em uma mesma profissão, com as mesmas qualificações, mulheres e homens alcançam posições diferentes na hierarquia organizacional. De acordo com o senso comum, mulheres nos cargos executivos seriam guiadas por sentimentos e intuições, enquanto os homens possuiriam comportamento mais racional e agressivo. As mulheres desempenhariam lideranças diferentes – menos coercitivas, mais favoráveis ao trabalho em equipe; além disso, possuiriam relacionamentos mais fortes no trabalho. Por essa crença, as mulheres seriam menos capazes de liderar, pois elas teriam mais dificuldade em usar a autoridade. O “teto de vidro” também está relacionado à maternidade e paternidade. Enquanto a fertilidade das mulheres é vista como um risco para as organizações, frequentemente, o casamento de um homem é visto como marca de estabilidade.
As representações sociais – os estereótipos – sobre as mulheres e sobre os homens estão na raiz das diferentes avaliações sobre o trabalho feminino e masculino. Eles moldam a forma como as capacidades, as habilidades, as limitações e os lugares sociais de mulheres e homens são percebidos, julgados e atribuídos.
[1] Atlas do Estado Brasileiro, disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasestado/download/154/tres-decadas-de-funcionalismo-brasileiro-1986-2017.
[2] Estudos apresentados no curso Mulheres na Função Pública, da Fundação João Pinheiro, do Governo de Minas Gerais. Disponível em http://fjp.mg.gov.br/mulheres-na-funcao-publica/.